quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Um Show de Mãos


Cortinas talvez não fossem capazes de esconder aquele palco que há tempos fora montado. Os shows de luzes e sons criavam a ilusão de que era outro mundo; mesmo assim, não se via o palco. Mais luzes, mais sons, vozes agora se misturavam na confusão que fazia da platéia um debater de cabeças, olhos e mentes. Passos, gritos, olhos, cabeças - histeria. Pessoas andam pelo palco. Muitas. As luzes, passeantes, não deixam à vista esses indivíduos; são apenas vultos vivos. Mesmo com a cegueira das poltronas, o palco torna-se um ringue; cada personagem grita e gesticula como se fosse um nesse tablado. Não há harmonia, e os barulhos se sucedem. Cada um, em seu palco criado por berros e surdez, tentava ao menos atingir um espectador que fosse. As palavras passaram a ser atiradas; saíam como pedras flamejantes na direção do quem-fosse-acertado. Os outros que ocupavam o palco faziam o mesmo; ouvidos fechados e bocas abertas. Havia muita gente na platéia; o que restou foram mãos que, sem corpos, bateram palmas.




sexta-feira, 21 de novembro de 2008

Inxergar


(Pelamordedeus, o título não está errado!)


Eram crises que a faziam parar tudo em volta: a voz faltava, todo o ar era pouco, os olhos procuravam algo que não se sabia ao certo o que era – e todos em volta, atônitos, apenas diziam ‘se acalme, moça!’. Os olhos, na crise, reviravam; a moça era só inconsciência. Esses espasmos não eram raros de acontecer, pois bastava qualquer instabilidade em si que seus olhos escondiam-se. Era toda estática; não reagia às vozes dos que a cercavam, que perdiam o fôlego de tanto ordená-la a resgatar o controle.

Mas recobrada a consciência, as íris continuaram escondidas. Todos em volta olhavam espantados a moça que, de súbito, levantou-se, de nada lembrando o que ocorreu. Pediu licença a dois indivíduos e uma criança que assistiram à cena, dirigiu-se até a porta da pequena recepção do consultório onde estava, desceu os dois vãos que separavam o 1° andar ao térreo e saiu do prédio, seguindo seu rumo. Os olhos continuavam virados; passou pelos outros, todos os outros, com suas pressas e buzinas. Havia alguns que os olhos-para-dentro nunca veriam. Certa de que estava tudo bem, seguiu para seu trabalho e, de lá, voltou para casa. Não se teve mais notícias de crises, muito menos do retorno das íris ao ‘lugar de origem’.



Lenine - Umbigo

domingo, 16 de novembro de 2008

Cara e coroa

Olhava atentamente uma reles moeda, que solitariamente repousava no bolso do paletó há dias. Nunca foi uma atividade muito interessante contemplar trocados escurecidos por tempo e mãos. Era apenas uma; não tinha brilho. Insignificante. Tão insignificante ao ponto de ser esquecida. Centavos que, ao menos, servem para (a)pagar o preço da consciência; a moeda foi passada a um pedinte. Se antes não havia, agora brilhos surgem, mas de olhos. Insignificante; talvez nunca tivesse sido. Ela reflete o que sai dos olhos de quem a segura.



quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Frio




Pensou sozinho. Talvez um raio no meio da cabeça resolvesse isso de uma vez. Já lhe bastava a agonia de ouvir suas meias enlameadas dentro do sapato. Desistiu de sentir a chuva. O guarda-chuva, pra variar, voou na primeira brisa. O tempo cinza deixava colorido apenas a lama que escorria pelas ruas mal-asfaltadas. Só o que se via era o barro. O homem caminhava lentamente. Já não importava mais sua casa. Não sabia onde ela ficava.

O tempo chuvoso deixa as pessoas mais apressadas e as ruas mais desertas do que elas já são. Gotas na cabeça. Batem ferozmente. Pedro pensava se seria melhor voltar para casa, tomar um banho quente e deitar em sua cama. Não iria conseguir. A chuva iria bater no telhado. Melhor se encharcar, pisar na lama, sujar os pés. Não tinha certeza, na verdade. Não sabia. Lembrava do que antes havia acontecido. Lembrava que aquela chuva era nada perto do que acontecera. Tinha vergonha de sentir frio. Tinha pavor de sentir frio. Queria esquecer sua casa. Ela o prendia. Antes não ouvia a chuva bater no telhado, mas agora sabe que ela não o deixará dormir. O vento baterá as janelas, as gotas continuarão batendo em sua cabeça. Nunca deixará de sentir frio.

Teve vontade de se encolher. Ergueu os braços até o peito e se abraçou. Passou por algumas pessoas abrigadas em uma loja de sapatos. Parou em frente a uma vitrine. Sapatos bonitos, novos. E o seu era barro. Ficou um bom tempo a olhar a exposição. Nenhum vendedor se aproximou. Pedro não tinha bem uma cara de cliente. Os sapatos atrás do vidro. Novos. Pedro baixou a vista e olhou os seus. Continuou baixo e olhando, sem saber.

Voltou a andar pela rua. Trombando com guardas-chuva, Pedro apenas olhava seus sapatos. Pensava se podia ao menos comprar um outro guarda-chuva. Não resolveria? O frio continuaria, mas as gotas deixariam de crucificá-lo. – Não sei. Os passos se seguiram. O vento alimentava o frio. O abraço há muito deixou de aquecer.

Pedro pára. A rua, sempre vazia, agora está desabitada. Ele olha para o céu. Olha as gotas caindo como flechas diretamente em seus olhos. A lama não saía do sapato, apesar da chuva. A rua. Pedro puxa um envelope de seu bolso, abre e o relê. ...se você ao menos me sentisse. Uma gota caía em si. O frio aumentava ainda mais. A gota escorre o seu rosto, descendo até o papel. Ele queria voltar. O frio não deixava. Pedro ouve um barulho em um toldo que cobria a frente de um prédio. Havia um mendigo que, ao vê-lo, pôs a se levantar. O frio aumentava. Pedro ficou atento ao homem que se dirigia a ele com um guarda-chuva bem velho, pelo tanto de furos que tinha nele. Mas protegia das gotas na cabeça. Chegando bem próximo, o homem nada mais fez do que lhe entregar o guarda-chuva. Assim que entregou, o mendigo se virou e voltou para a sua casa.

Pedro tentou se esconder do seu espanto, mas o guarda-chuva estava em suas mãos. Ele olhava o mendigo atentamente. O homem havia se deitado, cobrindo-se com um pano velho que mal dava para se aquecer. – Ele esteve sempre ali? Uma gota atravessa o guarda-chuva. ...se você ao menos me sentisse. As mãos tremiam descontroladamente. O frio estava insuportável. – Quero minha casa. Mas olhou pro mendigo de novo. O guarda-chuva se rasgou. As gotas são intermináveis. Pedro volta a ler a carta. Um vento súbito e forte afronta-o. A carta faz algumas danças no céu e cai em seus sapatos. Ainda na esperança de que a carta não se suje, Pedro a pega num gesto rápido. Mas ela já estava em seus sapatos. E a lama apagou toda a tinta.