domingo, 26 de dezembro de 2010

O palhaço

“Amanhã recomeço.”
Carlos Drummond de Andrade, em O elefante.

Riscada na fronte gasta,
a escassez do borrado sorrir
pela longa e só jornada.

Vermelha, a vergonha pintada
no nariz, de estranha forma,
recuando de olhares cinzas.

Amassado nas simples vestes,
dobra-se, na recusa de poder,
no bolso esquecido da sua vontade.

Os cabelos, enrolados no inusitado,
desagradavam a ordem no desgrenho.
E o pente ria ridículos com dentes quebrados.

Os pés amarrados no sapato velho,
enterrados na poeira dos dias vagos,
e desfeitos do brilho dos saltos vivos.

Mãos grandes, desastradas, caíam nas coxas,
por perdidas estarem no O-que-agarrar?,
ritmando o olhar vagante e vazio a girar.

Sentado na longa estrada, espera. Espera.
Sonhando o maior truque, último,
guardado num pequenino bolso, discreto:

vasculhando o interior do paletó, acha,
roto e esgotado, um antigo estojo,
com seus lápis e pincéis de rosto.

Com mãos seguras, limpa do velho rosto
a seca tinta que descascava em silêncios.
Despido de restos, olha o estojo, iluminado.

Pinta a ida a um Onde?, mapeado nos traços
do arco-íris a agora emoldurar uma face que,
tímida, esboça um sorriso, amarelo. Áureo.

E assim desenha-se, rascunhando felicidades.
O toque leve do pincel traz caretas e risos
e um vermelho outro aponta no grande nariz.

Sentado ainda, olha, com olhos de infância,
o imenso vasto que o envolve. Então levanta
e move-se, seguindo para seu destino. Pulando.



O pedinte



Um querer despido deixou-te caminhar com os pés descalços

e cavar mergulhos, com leves passos, na pulsante alma.

Uma voz em grito chamou-te a orar o sopro da vida,
a no verbo edificar a morada áurea do vibrante infinito.

Um olhar em silêncio pediu-lhe a lágrima, espelhada na face
recortada das rugas do sentir só, pedinte de toque.

Um coração vasto implorou-lhe uma única semente, flor etérea,
mas descrê a oferta de tua boca aberta a jardins outros – labirintos.




quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Traga o Eterno a silentes grades

“Se puder ser maior que se confunda com o mar...”
Violins, em O Pregador


Livra-te da gota fria a traçar exílios,

a desenhar o claustro na fechada face.
A tormenta de vagas lágrimas faz náufraga
a bonança de teu azul suspirar, que sopra nas
velas nortes abertos em rosas de floridos ventos.

O triste que escorre incerto do teu ermo olhar
não é mais que espelho do que desditoso te encerra.
E o cálice que guardas, na pretensão da segura espera,
enchido do seco sofrer, a ti apenas servirá na desolada
entrega ao véu metal do esquecimento.

Dispa-te da cinza ossada e deixe, pela fresta turva
do corpo, passar vibrante o silente clarão do Infinito.



quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Soneto* do sol perdido


O nome correto da música é "Luz da Aurora"


“Uma mulher é como a própria Lua:
Tão linda que só espalha sofrimento”
Vinicius de Moraes

Chorei. E, enquanto lágrimas eu vertia,
pálpebras turvavam duras a luz.
Erma a mão secava a perda na face,
sentindo um peito no bater, vazio.

Tua boca demolia a Babel erguida
no absurdo de desejos, a ecoar,
no páramo róseo, a alta serenata
da volúpia queda no calmo azul.

Pois o astro afundava dentre dois corpos –
juntos, distantes – quando um outro brilho
fundava a noite em minha triste praia.

eras tu: sol indócil, impossível,
plantando auroras nas areias outras.
E em mim, náufraga, te punhas, silente.


* É um esboço de soneto, sem rimas e com problemas na métrica. Consertarei...
Um dia.

domingo, 12 de dezembro de 2010

A matéria da Vida



O que resta no ar é o ermo aroma

findando o presente no Eterno
éter, a matar o insustentável do Aqui-ter.

O que resta de incerto se veste,
pois o infinito não é matéria tocante,
mas o indecifrável sentir em si.

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Isso não é o que resta: poeiras passadas
decaem nas veredas da Vida. Que levam. Trazem.
Exalando o que permanece perfume, pulsante, perene.



terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Imenso mar (ou O Tempo e o Eterno)



Insistente no céu o cinza hostil
irrompia
enquanto a calma nadava no imenso mar,
de raras vagas a girar com o alto vento,
fronteirando frágil as gládias naturezas.


O Tempo banhava-se no horizonte azul, de ignorada fundura,
fazendo sua misteriosa luz boiar infinita
e ferir a fria cor do sombrio páramo, de náufraga aurora.
Tirânico, o Eterno trovejava a noite de secas tormentas,
com o perdido chovendo no mar o morto olvido.

O horizonte rachava-se no triste embate:
a fúria celeste cavava os vagalhões titânicos,
golpeando com raios vácuos os braços do Tempo.

E, voando no ar, gritos do fogo e da procela.

O milenar paredão, cúmplice meu, murmura
em mim a dor ecoada de suas fendas.
As areias, meu repouso, são a morte da grande rocha,
escavadas pela amplidão das eras.
Sopros trazem a secura da guerra à pedra, cortando-lhe
a pele, e rajadas de vazio descem do espaço, fazendo verter
de um corpo morto as cinzas do Eterno cego.

Afundo-me na areia, incerto.
Com a face dura, impenetrável.
Descalço de fé, seco de unção,
esquecido da Hora.

Lembrado somente pelo rochedo de cínzeo pó,
cuja ossada é a cova aberta nas ruínas dos milênios –
onde enterro-me, ausente de mar, surdo de estrelas.



sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Os cães tristes

"...e esse silêncio a prender-me a vista no que resta."


Prendidos em gastas grades, os olhos
cansados vagueiam a rua movimentada.
E as passadas urbanas espalham-se
na interminável rua cinza
como as manchas a tingir os pêlos.
(A gasta penugem de raras carícias
era o duro asfalto a marcar o tempo.)

E, presos, viam os carros, sem correr atrás.
Presos, viam cadelas, sem uivar em torno.
Presos, viam estranhos a gaiola silente.

Sentados, pousados em caudas imóveis,
esgotados da longa espera, paralisados.
Passantes encaravam, estalavam dedos,
moviam-se e, indiferentes, os cachorros
permaneciam, distanciando a vida.

E, onde estavam, a casa era o espelho da multidão de sós.

Mesmo aberto o portão enferrujado,
parados permaneciam.
A rua ousava cada passo no turbilhão humano,
e parados se restavam.

Pois o faro guarda apenas o cheiro do ferro gasto
a marcar de frio o mais inocente latir
e turvar-lhes as claras íris, quase brancas,
com vermelho que tinge a mais dura grade
em peitos que apenas olham, tristes.