terça-feira, 24 de agosto de 2010

Cristal



Um copo que pouco importava na mesa de um tranquilo bar. Havia sido deixado pelo garçom, que se passou no número dos confrades. Típico vidro que aparentava ter sido antes recipiente para algum requeijão ordinário ou outro produto qualquer, levantando a incerteza de sua original função. Pois lá estava vazio: ninguém chegaria para dar serventia ao desnecessário objeto, tampouco alguém da mesa lembraria sua presença. Os cuidados se voltavam a copos cheios e garrafas a somarem-se ao pé da mesa e na bandeja do garçom, solicito por conta do entusiasmo dos clientes. A sua sincera transparência tornava-o invisível, útero infértil, vazio em sua morta alegria. Por mais que estivesse ali.

Uma mão aproxima-se cuidadosamente e, resoluta, segura o copo disposta a preenchê-lo. O tédio ébrio fez do vidro seco vaso, agora tonto no suor frio da esperança de uma gota, ao menos. O tato quente tirava o gelado da espera na mesa cambaia, tal qual cadeira de balanço a guiar os velhos entre passado e presente pelas casas antigas. A boca, sempre aberta, parecia agora sorrir, vendo a garrafa inclinar-se para depositar parte de seu interior.

Porém o descuido: a mão, na confusa embriaguez, perde-se na coordenação motora e na falta de firmeza. A garrafa ainda deixa pingar gotas na borda do copo que, inevitavelmente, desliza pela palma, rola pela mesa – inutilmente amparado por outras mãos –, e se desfaz no chão, espalhando os restos por cantos incertos, que a vassoura não achará.

Segundos de atenção são roubados pelo copo: os presentes na mesa, recuperados do susto, fazem as costumeiras graças daqueles que, na alegria inebriante do álcool, não pensam em restos e cortes. A mesa continua a abrigar garrafas e brindes. E algumas gotas ainda escorrem dela, pingando no cimento um brilho que se confunde com estilhaços do frágil copo.



sábado, 21 de agosto de 2010

A Grand Rave




Cortado o Ser foi do cordão umbilical da ludibriante mãe Fortuna, que, desnaturada, ninava o Indivíduo ao embalo de um suave réquiem. Órfãos do completo, equilibristas caídos do Telos: os cacos de um agonizante eu agora se diluem esparsamente nas lágrimas do incerto e se distorcem nas batidas surdas de luzes e delírios de uma grande festa. A linha que ritmava a humanidade é sua forca, com seu nó sendo atado na curva do vazio, grande cosmos a orquestrar o efêmero dos cadentes.

Nas cavernas discotecadas, onde as sombras agora dançam com luzes negras ao som do trance, Platão frita ao sabor de sua estragada bala de Ideias. Cópias e sombras virtualizam as roupas de gala da criação, desnudando o original no seu raquítico e anêmico corpo, hilária verdade que se perdeu na primeira caverna.

E assim brinda-se o frágil sabor do instante, cantado pelo coreto dos liquefeitos restos daqueles que bebem.




Porém, um breve brinde. Pois, na Grand Rave, os alcoolizados de si dançam em círculos ao som do psy-pós-réquiem, buscando a conexão com um virtual Nirvana, enquanto a lama, com a desconcertante dança, transmuta-se no barro da Descriação.



quinta-feira, 12 de agosto de 2010

O toque de nuvens



As mãos buscavam alcançar aquela alegre ilusão. As nuvens e o céu, detalhadamente pintados, despiam o teto do quarto do fosco branco que comumente serve de proteção para cabeças mundanas. Nos deslimites da inocência, o bebê buscava estranhas formas que nadavam naquele mar imóvel, mas de beleza estonteante. Sem saber o que é mar, forma, pintura ou distância, ele tateava; via o quarto ser inteiramente iluminado e refletir o seu sorriso ainda sem dentes.

Os olhos, estrelas brilhantes em explosões de descobertas, não se desprendiam do céu. Sempre ali. Sempre azul. E a criança ignorou que havia grades em seu berço: acariciava o infinito com suas miúdas mãos.

Leia ao som de O voo da pomba, de Milladoiro.

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Amantes



O vermelho que tingia trajes íntimos ficara no chão, sobrepondo-se a um jeans surrado. No ar rubro, evolava-se a incandescência de olhos embaçados pela inebriante fumaça. O incêndio, antes guardado em costumeiras vestes, despe o desejo, agora livre. Não havia janelas, olhares, tempo ou espaço – sumiram na chama; nada havia além de duas brasas batendo dentro de dois corpos: magma incendiando o mundo e que, nas cinzas do amanhã, manter-se-á acesa como centelha da memória de uma viva vontade.