quarta-feira, 30 de janeiro de 2008

Transgenia Social



De fato, ao menos um pedaço de pão serviria para matar a fome daquele pobre homem. Pouco importava se o trigo tinha teor extra de álcool ou vinha de pastos nascidos do desmatamento.

Mas ninguém se importava. O mendigo era a erva daninha da transgenia do sistema.



sábado, 12 de janeiro de 2008

Prelúdio

(Leia com a música. Espere carregar toda.)

A noite estava pesadamente escura. A 4ª Bachiana ressoava por todo o teatro. Todos os espectadores, trajados elegantemente, como o ambiente pedia, saíam satisfeitos. Era uma área high class, como muitos diziam lá. Ouviam-se saltos altos, celulares tocando, motoristas particulares chegando. Mas alguma coisa mantinha a Bachiana ressoante naquele lugar.

Havia um mendigo na porta do teatro. Encolhido, pois o vento era muito forte. Era um período de chuva. Os espectadores comentavam sobre a beleza que eram as peças de Vila-Lobos. “Dava orgulho de ser brasileiro, ao ouvi-lo”; era o que alguns diziam, resumindo o pensamento de todos que estavam no teatro. O mendigo continuava lá fora. Não poderia compartilhar da mesma opinião. A fome e a falta de panos não o deixaram ouvir a orquestra. Ouvia apenas a indiferença que saia dos espectadores. Gestos, falas, sorrisos que não eram para o pedinte. A Bachiana era tão bela...

O vento ficava cada vez mais forte. O tempo, mais fechado. Guardas-chuva se abrem. O mendigo se encolhe, olhando para os lados. Não há lugar para se proteger. Ele levanta. Receoso, tentando se cobrir com o pouco de pano e papelão que tinha em mãos, se aproxima da entrada principal do teatro. Tenta conseguir pelo menos alguns papelões a mais ou um espacinho no teatro até passar a chuva. Os espectadores se entreolham. Torcem bocas e olhares, aumentando o frio no homem estranho que aparecera. Um segurança, ainda se aproximando, gesticula para o mendigo se afastar. Ali não era lugar para ele. O farrapo nem ao menos se explicar conseguiu. Empurrado e abatido, volta para a rua.

A chuva ficou mais forte. Começava a respingar nos espectadores que estavam na porta do teatro. Eles entraram para se proteger, apesar do concerto já ter acabado. Só um homem estava lá fora. Não dava pra ver o rosto dele. A chuva era mais forte. Devia haver lágrimas marcando o compasso da Bachiana, mas ninguém ouvia. Talvez a Bachiana do mendigo não precisasse mais de choros. A sua regência era eterna. Os espectadores continuavam a conversar e a elogiar o espetáculo. “Como um homem inseria tanta brasilidade na música erudita? Era esplendoroso!”. Eles só pensavam na Bachiana.

O mendigo, ainda na porta, olhou novamente para os lados na esperança de achar um abrigo. Seu papelão e sua roupa já estavam ensopados. Ele começava a se tremer. O frio aumentara, assim como o vento. Voltou-se para o teatro. Alguns espectadores olhavam, talvez mais preocupados com seus motoristas que demoravam a chegar. Alguns até comentavam sobre o mendigo. O homem da rua, que não sabia mais para onde olhar (sua cabeça estava abaixada), ergue suas mãos tremidas pelo frio até o peito e as junta. Após isso, ele vagarosamente se ajoelha. Não havia mais para onde olhar. O céu estava fechado. E o chão escondia sua vergonha.

Os espectadores se espantam. Não se ouve mais elogios. Nem a chuva era ouvida. Apenas um choro regendo um prelúdio. Prelúdio este que não acabava. Ecoava em cada dia desse homem ajoelhado, mesmo sem ele nunca ter pisado em um teatro.

O prelúdio ganha um novo regente. Não há gestos graciosos de um maestro, mas sim duas mãos trêmulas, unidas e encostadas ao peito. Os espectadores começaram a ouvir, de verdade, a Bachiana. Lágrimas acompanhavam a sinfonia ouvida por aqueles que o teatro sempre deixara de fora. A Bachiana era muito mais conhecida para o mendigo do que para os espectadores. Ela o tocou primeiro. E ele não quis ouvi-la. Era ele o maestro, agora, e os espectadores sentiam a triste regência escorrer entre gotas de chuva e lágrimas. As súplicas que nunca foram ouvidas, as moedas que nunca foram dadas, um espaço não cedido para que a chuva não o molhasse, lágrimas que nem com a força dos céus conseguiam ser ouvidas. Agora a Bachiana fazia com que aqueles que estavam dentro do teatro ouvissem o maestro. Ouvissem suas lágrimas.

Mas, ainda assim, os espectadores continuavam dentro do teatro, e o mendigo, fora. Alguns saíam pelos fundos do teatro, outros passavam pela escada que o mendigo se encontrava. O segurança não tinha mais coragem de tirá-lo de lá. Ninguém tinha coragem de, ao menos, olhar para ele. A chuva escorreu a dignidade de todos. A chuva escondia o rosto de todos. O maestro conseguiu comover sua platéia. Mas as palmas não vieram. Todos olhavam para baixo. O prelúdio se eternizou.



segunda-feira, 7 de janeiro de 2008

Metáforas


Paredes que protegem
e isolam.
A difícil linguagem:
a voz que cala e que mascara
a alma.

Muros de ouro...
Essa não é minha voz.

Talvez mostrem algo que eu tenho,
mas não o suficiente.
Mostram sua beleza
e me trancafiam aqui.

Seria a morte da poesia
se a voz de quem está cercado
fosse ouvida.

Não haveria mais prisão,
dor,
Solidão...

É uma fênix que nasce das
cinzas.
Cinzas caladas e solitárias.

Nada se aproveita do pó.
Resto do fogo da paixão,
esperança,
alegria
e de tudo aquilo que fez construir
os muros.

Estes ainda protegem o corpo
inútil.
O resto abandonado que malmente
agoniza.

Nada mais restou.
E quem era para receber
o tanto ouro dos muros
não viu sequer uma brita.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2008

Fortunas da Guerra




Marcha,
Tropas,
Armas,
Mentes.

Lágrimas,
Lembranças,
Medo,
Ordens,
Destino.

Fogo,
Neblina.

O ponto final da razão.
O céu se fecha.
O fogo engole almas,
casas, palavras,
Crianças.

A chuva cai.
Sangue cai.
Bombas caem.
Corpos caem.

Os tiros não param:
matam um pai com dois filhos,
matam um médico que queria salvar vidas,
uma senhora que carregava sua filha,
morta
por um tiro que o céu, aos prantos, não viu.

Os tiros acertam cabeças mortas.
Os tiros saem de cabeças mortas.
A guerra nasce de cabeças mortas.

Nada pensam.
Trocam o pente,
apenas apertam o gatilho,
tiram o pino,
matam um filho,
explodem um abrigo.

Fogo, fumaça, sangue,
tudo se mistura.
Vira cinza.

Cinzas...

A fênix não ressuscitou.

A esperança resolveu ser do contra:
morreu com os tiros do 1° pelotão.

O amor morreu abraçado com uma criança que queria ser herói.

Na guerra,
Generais viram estátuas.
Heróis...

Os homens não amam os inimigos.
Porque são inimigos?
Inimigos choram?
Crianças são inimigos?
Doentes são inimigos?

Não se ouve a resposta.
Os tiros não deixam.
E quem poderia responder
já deve ter morrido.

As mãos se apertam em armas,
Os abraços são em mortos.
Os sorrisos são para alvos acertados.

A mãe morta,
arrastada até um escombro.
Bombas,
tiros,
nada se ouve.
O filho vê uma arma.
Um cadáver de um soldado.
Outro.

Raiva,
Arma,
Mãos,
Mãe,
Morta,
Tiros,
Morto,
Filho.

Tropas,
Marcha,
Avanços,

Vitória...