domingo, 30 de agosto de 2009

Saco vazio não para em pé



O suave desejo:

mel transmutado em carinho
torna a massa doce e dourada.

Mas o saciar
para na goela:
a delícia do sabor não alimenta.
Temperos ardem, mas não enchem.

Açucarado, delicioso.
Mas o fermento é pouco.

Veludo de toques
que voam como farelos.
E o corpo cheio de fome.

E a tensão da espera:
poderá repetir o prato?

E a angústia,
pão dormido e frio,
devorando o homem a cada engasgo.



quinta-feira, 27 de agosto de 2009

E não sabe que voou



Duas leves mãos. Apenas isso restava. De tão leves, voaram. Para longe. No carinho acenam um ‘Adeus!’. Seguram, e empurram. Tateiam levemente um coração e tapam sua boca, a fim de que não houvesse mais choro.

A pressa de agarrar e manter como seu não mantém essas tão flutuantes mãos perto (a força não segura o que não é posse). Aquele que sempre foi cego tinha no suave tato a vida. Tinha talvez o que nunca foi, de fato, seu. Tem agora mãos em súplica e algo que voltou a lamentar; tem agora o que nenhuma mão quer segurar – a própria morte.



sábado, 22 de agosto de 2009

Cacofonia



O choro silencioso,
uma corda levemente desafinada.
Discreta dissonância –
poucos ouvem.

Afinar a fina corda
sem feri-la.
O risco é grande:
não há outra para repor.

Parto-a de súbito,
ao tentar a perfeita harmonia
ou o esquisito acorde,
reverberando lamentos?

O vazio torna-se desejo –
silêncio cantando as notas.

O vácuo decai, ecoante;
a dissonância continua.

O desafinar sai de mim.




Mais uma vez, o espelho



Faxina no quarto: a empregada nunca deixava como estava antes da arrumação. Então Ele mesmo cuidava de organizar seu espaço. Primeiro, a poeira embora – vassoura, pano com produto de limpeza no chão; flanela úmida, lustra-móveis. Objetos reorganizados – alguns insistem em não sair do não-lugar. Rotina semanal, esforço eterno.

Agora, vidros. A parte prazerosa do trabalho; a vista parecia mais bonita do lado de fora, apesar de, por algum motivo, ninguém conseguir abrir aquela janela. A limpeza não bastava: o lado de fora continuava sujo. Alguém de fora percebia?

E abria o armário. O espelho. Cansava-se só de olhá-lo. Parece não prestar mais, só que não podia se desfazer dele. Por quê? Já estava repleto de manchas, que atrapalhavam a imagem. O tempo passava: limpa-vidros, bombril, receitas caseiras, raiva, nada resolvia. Nem ao menos diminuía os pontos. Mas toda semana tentava. É sua rotina.



sexta-feira, 21 de agosto de 2009

Vale quanto pesa



Peso, preço, nota;

– Obrigado!

Fila grande,
fome sentida

não pelos outros,
clientes passageiros,

mas por ele, no desejo de ser,
vazio de tanto servir.



domingo, 16 de agosto de 2009

Órbita perdida



O homem já não dava passos leves como os de antes. Por não sentir o chão – sina dos mal-alados – acabou beijando-o em diversos buracos. E os olhos forçaram-se ao céu. De lá, não caem respostas: apenas estrelas. O chão é gelado, assim como o firmamento. Mas o azul pinta os olhos, ardil colírio (melhor do que esperar daqui de baixo conseguir abraçar todo o azul é saber se o infinito de sua alma consegue preencher seu próprio vácuo). E atrás do azul, um todo repleto de nada.





quarta-feira, 12 de agosto de 2009

Hermenêutica



Uma cirurgia em seu rosto pode fazer com que você mude muito mais do que seu sorriso. E pode ser uma grande metáfora.



Enterrando alguns mortos para que, a eles, possa-se rezar uma missa em paz. Ainda há tempo de se conseguir sair do purgatório. Os ossos ficam, a carne se desfaz, e a alma se refaz.



Tela escura



Caixa pesada, encomenda a ser entregue.

Primeiro emprego, último dia a pisar numa escola
(aprendeu a difícil lição de não esperar sentado um futuro que nunca virá).
O medo dando força para sustentar o objeto embalado.
Sozinho estava:
– Gilson com mais um atestado médico e eu aqui...

Campainha, espera, espera, campainha, espera,
porta abrindo.


Nota fiscal em mãos, agora trêmulas;
a encomenda é conferida: monitor LCD;
a assinatura e entrega.

Faltava algo ainda:
dia inteiro de entregas,
garganta seca.
Língua seca,
voz seca e murmúrios.
– Por favor...

O monitor era o esperado,
não um pedinte.

Só um copo. Vida dentro.
Um pedido, um olhar. Vida.
Pedido, recusa, orgulho, ofensa. Vazio.
Olhos no chão, arrastados.

Água, água, água.

Que não sacia.
Que esvazia.



sábado, 8 de agosto de 2009

A fotografia



Aos velhos amigos

Vendi o passado, pois o dinheiro valeria para nascer o futuro. Na prateleira, revia a peça, que alguns trocados facilmente valeriam o câmbio. Mas provavelmente não haverá compradores (agora sei o desprazer de ganhar um brinquedo usado – os bonecos já vêm pintados de fantasias alheias). Espero o troco da venda, num misto de esperança e desespero. Moedas caem, ao invés de em minhas mãos, no chão – o preço da esmola. Espaços vazios na mente e minguadas moedas mantidas na mão – agora me dirijo à rua.

De fora, vejo a vidraça que separa a venda da calçada. Estranhamente, o passado, tornando-se distante de mim e parcialmente turvo aos passeantes, acenava cenas que antes eram minhas. Brigas bestas de amigos enciumados, expulsões hilárias de uma aula, uma excursão, piadas idiotas sobre fatos antigos, entre outras imagens que, foscamente, surgem do passado agora opaco.

A gente ria por cada besteira.

Eu forçava a vista para conseguir enxergar, mas a pressa fazia os trilhos de asfalto me arrastarem pra dentro da locomotiva do ofício. Ainda pensei em voltar, mas já estava seguindo a marcha. Os trocados não renderiam – e eu não via a última estação desse trem.

Não lembro mais o que deixei à venda – mente sem passado não pare memórias. Meu bolso diz que não valia muita coisa o que ficou. No andar pelas ruas, vejo alguns jovens conversando alegremente. Continuo meu caminho.








A gente chora por cada besteira.



quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Schopenhauer para crianças



O velho Arthur lembra-nos da condição humana quando colocamos um porco-espinho em nossos peitos:

"Um grupo de porcos-espinhos ia perambulando num dia frio de inverno. Para não congelar, os animais chegavam mais perto uns dos outros. mas, no momento em que ficavam suficientemente próximos para se aquecer, começavam a se espetar com seus espinhos. Para fazer cessar a dor, dispersavam-se, perdiam o benefício do convívio próximo e recomeçavam a tremer. Isso os levava a buscar novamente a companhia uns dos outros, e o ciclo se repetia, em sua luta para encontrar uma distância confortável entre o emaranhamento e o enregelamento."

Fonte do fragmento aqui.



quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Esquinas paralelas



Pedi um tempo para que você ouvisse o que eu tinha a dizer. Mas não bastaria apenas falar. Saber o que é dor é a melhor forma de se comunicar – isso você pouco sabe. Nada sabe. Pouco tempo bastaria, mas sua pressa correu da súplica. Sua pressa de ser você deixou de lado uma mão pendente.


Agora te levando, sangrando e de olhos aéreos. Seu foco se perdeu no caos. Mala pendente, terno rasgado – tiro no peito. Sua pressa desviou-o do caminho de sempre. “Por aí não!” eu disse, mas o som não dobrou a esquina. Dois sujeitos dobraram, e um disparo dobrou de volta até a mim. Levantei.

Peço um tempo para que você ouça o que eu tenho a dizer. Mas não basta apenas ver. Saber o que é dor é a melhor forma de se comunicar – isso você sabe bem. Muito. Pouco tempo tenho, mas sua pressa correu para a súplica. Sua pressa de ser você deixou de lado uma mão pendente e salvou um cadáver.

Agora não mais levanto, sangrando e de olhos fechados. Meu foco se perdeu no silêncio. Vida pendente, tempo rasgado – ponto final. Minha pressa desviou-me do caminho de sempre. “Por aqui é mais rápido” eu pensei, mas o cuidado não dobrou a esquina. Dois sujeitos dobraram, e um disparo me dobrou no chão. Caí.

Agora sou dor. Carrego o que não posso suportar e o que me destrói. Carrego as lágrimas de não poder ajudar quem está tão perto. São corpos vazios, que se aproximam sem que vejamos. Nunca vemos: pois só a dor nos faz entendê-los. Só.



terça-feira, 4 de agosto de 2009

Envergonhados



Vergonha temos do que deveríamos fazer quando pudemos ou do que fizemos sem poder fazer.
Vergonha temos dos estranhos que nos observam e de nós, que fazemos estranhos humanos.
Vergonha temos de perder, mas não de derrotar, aniquilar, matar.

Vergonha temos de pedir, porém mais vergonha temos (ou deveríamos ter) de não dar o que deveríamos.
Vergonha temos da nudez, mas do strip, só temos após a ressaca.
Vergonha temos do beijo ou do olhar, mas vergonha maior é isso ser apenas sonho.
Vergonha temos dos amigos, contudo vergonha maior é não termos alguns deles pra sentir vergonha.
Vergonha temos do outro, pois as nossas escondemos.
Vergonha é ter, no espelho, uma cara escondida.

Não tenha vergonha de mim. Não tenha vergonha de si.



sábado, 1 de agosto de 2009

Reta, retorno, círculo, ponto.



Fazer da saudade, desejoso voo,

a guia do tempo,
é trazer ao presente
um espelho quebrado;

é dar ao futuro
retalhos refletindo
memórias -
elas não se juntam.

E as horas,
antes linha horizonte,
transmutam-se
num ponto
final.