segunda-feira, 30 de julho de 2012

Joia náufraga




O pequeno barco permaneceu parado. O mar, imóvel como um asfalto, falava a calmaria. Seria pecado qualquer ruído ali. Antes disso, seria desnecessário. As águas ouviam, bem até demais. E assim nem peixes balançavam a rede, jogada inutilmente para servir de motivo para aquela silenciosa navegação. Porém necessária. Não era hora de pesca; mas final de tarde. Fim. O velho marinheiro olhava as mãos marcadas pelas redes da vida, algumas rasgadas, outras remendadas. Depois de vê-las, olhou para o céu. As cicatrizes se encaixavam com algumas nuvens, e o velho sentia isso quando levantava suas mãos. Ao fazer, sentia fachos de luz passar pelas palmas estendidas, e um brilho permanecia nelas. Talvez houvesse uma normalidade e serenidade no velho que só era vencida pela tranquilidade do mar – ou era só silêncio. E ele apertava as mãos como se pudesse agarrar a luz, embora ela passeasse por sua mão e voltasse aos céus. 

A rede, a permanecer vazia, acompanhava o caminho da corrente marítima abaixo do barco. Sem peixes. O velho, olhando para trás, via a areia do mar sendo tingida pelo crepúsculo. Feixes de luz agora iluminam todo o mar, fazendo dele um escuro tecido com fios dourados. O velho permanecia parado, com um amarelo a passear pelo seu rosto. Parecia uma carícia. 

E a noite transformava em prata os fios antes dourados. O frio começava a aumentar, mas, com a mesma serenidade de antes, o velho recolhe a rede. Pesada, porém vazia. Remando, volta à areia e, apesar da idade, empurrava o barco, como sempre fez. Sozinho. Guardou a rede num pequeno baú que havia na embarcação e seguiu para sua pequena casa. Mas antes, como sempre faz nessas saídas, puxou uma velha aliança, já gasta pelo tempo. Tempos atrás, carregava um ouro que cegava o sol. Agora, um fosco cinza mal reflete a Lua. 

Olhando-a lentamente, pareciam sair luzes de seus olhos, misturadas a um mar que todo homem carrega no seu mais escondido oceano.



segunda-feira, 9 de julho de 2012

Deus




"Se eu quiser falar com Deus
Tenho que ficar a sós"
Gilberto Gil

Eram engarrafamentos diários como esses que me faziam ignorar o trajeto que me trouxe aqui. A cidade tem sons dos quais tento esquecer, porém a rotina é a pior das memórias. Ando olhando apressadamente lados – e até pra cima, com medo de aviões, pombos ou estrelas cadentes – antes de atravessar a rua. Até queria que caísse algo. Mas não houve nem chuva. Continuei até alcançar a outra calçada, onde turistas faziam suas costumeiras ovações a tudo que era diferente dos seus locais de origem. Disso vinham os lampejantes momentos de estrelato de anônimas baianas de acarajé ou criativos vendedores de balas. Outro problema de nossa vida engarrafada: deixar o fosco do cinza entupir nossa vista para o sublime. E desse sinal vermelho parecemos nunca sair.

Fico um tempo a olhar as pessoas que andavam naquele ponto da cidade, alegremente movimentado. Não era o farol, com seu museu, que as trazia para cá; eram 17 horas, e as cores do céu misturavam-se em indefinidas belezas, cujos contornos só existiam nas poucas nuvens e na ilha que, ao longe, acenava tímida dentro do mar. Sento-me tímido entre grupos diversos e numerosos que se acomodavam em gramas e pedras, com máquinas, celulares e poses, para manter tudo aquilo na falsa/eterna memória de nossas máquinas. Tiro duas fotos e logo deixo de lado o telefone, mantendo-me – só – fixo diante do sol. Ele me esperava. 


O grande salto não é apagar o corpo, matéria-ninho da vida, maestro da existência, mas é mergulhar no grande escuro do firmamento, esquecido de limites. E o silêncio que carrega é – nesse grande amplo – a semente de sua força, a empurrar planetas e engolir luzes. Se te falta a coragem, é porque a visão se perde no opaco chão da triste vida dos comuns. Há um vermelho que te acende o erro. Não é essa luz. E cego, não percebe a distância. Anda tateando o vazio. E tem apenas ordens como caminho. 

E outro cansar te aflige. Quer a sorte do calmo azul, em que tudo está ao tato dos olhos. Mas esta é a queda derradeira, a levar-te ao abismo dos 7 mil passos da solidão. Da morte errante que até hoje faz de você o nômade dentro dessa cova. Cova rasa de um azul que sufoca o maior. O espaço. Nele – seu corpo deve banhar-se. Inundar-se do silêncio que desdiz agoras, mas que trará. Lembre: você deve levar corpo e alma para esse negro mar. Lá – vivo – você entenderá.


17:43. Ouço palmas de praticamente todos que estavam ali, a ver nuvens banhadas num ouro que humano algum poderia tocar. E, depois de anos, rezo. Na verdade, ouço. Não é prece alguma conhecida. Mas uma oração que apenas eu e Deus – ali – conhecemos. Eu continuava parado, pois os ecos da voz carregam-me até a mim. Os tons que dançavam com o amarelo me arrastam para tudo que eu guardo e que apenas aquela voz entende. Mesmo repousando na distante ilha, me diz a calma das pequenas ondas e das cores no ar. Todas essas formas são entoadas no grande silêncio que me cobre. Plenitude. Redenção.


segunda-feira, 2 de julho de 2012

A cruz-moldura


Escorriam rios de uma estranha tinta, quando se foi embora aquele rapaz que morava na fotografia emoldurada na estante. Cada vez mais desbotada, a imagem esfarelava-se, rompendo o vidro que falsamente a dava uma segurança de eternidade. Havia um vermelho a descer pelo móvel a sustentar a moribunda foto, a encharcar tapetes, a afogar berços. E o garoto saiu, com punhos e pés furados por uma misteriosa cruz que pregava passos, gestos e sorrisos. E, de seu corpo, a certeza de que não era tinta que manchava sua casa e pintava seu passado.

Mesmo o sangue cansa de amar.