terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Glosa sobre a Saudade



Há versos que não devem ser escritos.
Cortinas de lamentos enclausuram o corpo num triste escuro.

Alguém que se foi,
uma longa partida,
um peito partido,
nada disso merece a elegia.

Esses versos, amigo, faz do volátil pedra
que insistentemente afunda o corpo num profundo maremoto.

O seu coração bate.
Ainda bate.

Não escreva tais versos, pois a saudade não é gaiola aberta
chorando por um passarinho que voou.

Não escreva tais versos, pois a cortina, densa de lã fria,
ainda deixa passar, numa fina brecha de luz,
o canto de um pássaro amarelo

que não cessa de cantar
num peito partido.

É a vida a cantar, meu caro,
e a saudade é a alegre lágrima
de um outro viver, longe,

ecoando os raios de um infindo voo.



quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

O presente



A festa, a fome, a forra, a farra:

Mãos estapeiam salgados –
farelos na toalha de mesa
depondo a tirania materna.
A criançada dava seu presente.

E, nas voltas rotas das dobras,
o segredo tonteando o tato.
– Venha partir o bolo, menino!
As mãos tapavam os ouvidos
no passeio cego do toque.

– Não vai comer nada?
Estava envolvido pelo laço azul
num tempo cinza e de barrancos.

A embalagem cobria a laje da chuva.
Um cartão, pequeno, com breves letras,
antecipando o pequeno trator amarelo:

É com um desses que seu pai está fazendo nossa casa.
Te amo.

e aquela esperança amarela
no sorriso do menino,
que se alimentava dos farelos
na mesa de doces.



sábado, 9 de janeiro de 2010

O quarto



Refúgio e castigo. Crianças sabem bem como essas palavras se misturam: a janela quebrada por uma bola, a resposta mal-educada, e a ida escondida pro quarto. Fuga incerta, punição certa – toda mãe sabe o caminho do cômodo.

Da infância, trazemos o fique em seu quarto e pense no que você fez, ordem que vibra o fio do tempo: mesmo findados os sons do passado, reverberam seus ecos no presente. Retiro e martírio para a consciência, o quarto é daqueles lugares em que a reflexão fadiga o corpo. A paz se desfaz quando o corpo pousa na cama, quando se pensa nas janelas quebradas dos dias. Estampidos de palmadas e vozes adultas modulam-se em uma voz que, calada, consegue tirar o sono. Pensa-se no que deveria ter sido feito ou dito, um breve devaneio para disfarçar o claustro da realidade, fechado por muros de ecos.

Um gesto não dado, parado no conforto da indiferença, fez do meu quarto o confissionário da noite. Era um dia cheio de atividades e impaciência; dentro de um ônibus, partia para comprar algumas roupas em um shopping, pois as festas de fim de ano estavam chegando e, apesar da má vontade, o tédio venceu e fui aos trombos da multidão consumidora. Na ida, dentro de um ônibus no meio de um engarrafamento, como de costume, havia um vendedor lutando por uma noite feliz, oferecendo canetas aromatizadas. Não me interessava nenhuma delas (é costume de professor ter caneta até demais), então voltei a olhar os carros parados no engarrafamento. Durante seu monólogo, o vendedor passava pelas cadeiras, oferecendo o material de venda para os passageiros, para que eles segurassem. Mera tática para que a possibilidade de compra seja maior. Como não é do meu feitio deixar minhas anotações com cheiro de morango (não sou adepto à escrita cor-de-rosa), recusei a oferta do comerciante, assim como todos os outros no ônibus. Voltando a olhar a movimentação dentro do ônibus, noto que, nem criança a pedir à mãe, nem uma adolescente para deixar seu caderno (mais) clorido, ninguém ao menos pegou o pacote com duas canetas e um salmo da Bíblia para segurar.

Vendo a indiferença guiando os passageiros, o vendedor, não conseguindo fixar seu olhar em um ponto e segurando nas mãos um dos seus produtos, disse, em voz travada por vergolha e gagueira: sei que nem todos querem um desses e nem devem se sentir obrigados a comprar, mas pelo menos segurem. Pois assim sei que vocês me ouvem.

Dito isso, pediu para que o motorista abrisse a porta de saída do ônibus e desceu.

Cheguei a meu destino, fiz o que deveria ser feito, mas a fala do vendedor dissonava a bossa nova que ecoava no shopping, acompanhada de vozes da multidão. Já em casa, olhando para meu estojo, lotado de canetas azuis e vermelhas (inodoras), continuava a lembrar do fato no ônibus. Um ato insignificante – até mecânico ultimamente –, que é segurar os produtos oferecidos pelos vendedores, forrou de desconforto minha cama. Um homem colocando uma fatia de sua esperança na mão de indiferentes estranhos. Mesmo se ninguém fosse comprar, mas, ao menos segurasse esse saco, sua jornada como vendedor, que também tem uma ceia para fazer, que também tem filhos que pedem presentes a Papai Noel, poderia seguir, já que esses sacos não voltariam vazios. Ele também tinha seu quarto, onde os ecos do passado batem em sua porta. Mas, no coletivo, a viagem é individual: o outro é um passageiro em pé desejando sua poltrona. E o vendedor era uma voz distante, sem corpo. Alguém que não se segura pela mão, tendo que, assim, descer do ônibus antes do ponto.

No quarto, volto a me sentir como aquela criança que, depois da malcriação, corre para seu cômodo, como se pudesse fugir do erro. Abriria uma papelaria com o número de canetas que desejo comprar, mas não há mais negócio, e sim a dívida. Resta o saco de compras, as roupas novas, largadas pela cama esperando uma vaga no lotado guarda-roupa, notas fiscais. E o estojo, fechado, como minha boca.

A bronca, em silêncio, dá seus passos e bate na porta.



domingo, 3 de janeiro de 2010

Insone



O ombro mudo

do travesseiro abraçado,
cochichando sonhos.

Cobertor repousando
o carinho de mãos distantes.

A cama range a ferrugem
das lágrimas da memória

e murmúrios do peito
apenas a ninar
o vácuo da noite.