segunda-feira, 26 de julho de 2010

Partida



As malas sempre são pensadas com antecedência. A porta aberta do guarda-roupa lembra, a cada momento, a alma de Laura despida da coragem de separar o que pretende levar. Os dias passam e algumas peças, penduradas em cabides já marcados, lembravam-na da tarefa descomeçada. Agora malas, abertas e jogadas na cama, ecoam o passado que, costurado em partes íntimas, públicas, acessórias e fundamentais, espalham-se pelo quarto e pela vida de uma garota que numa aventura trágica escolheu outro lugar para viver.

Com a porta do quarto trancada para evitar incômodos, Laura começa a separar o que poderá levar. Era outro estado, sem parentes ou amigos a recebê-la. A euforia inicial do desconhecido foi fulminante; nova vida, agora universitária, agora só, agora sua. Animava-se pela sua semi-independência, já que a asa dos pais agora surgia apenas para cobrir as despesas. Era responsável e séria – eles e ela tinham convicção disso –, mas o fogo da alegria apagou-se no vento volteante da insegurança. Ela sabia, e ninguém mais, que mãos carinhosas, de tão leves, agora acenarão um “adeus” que será difícil de tirar da sua bagagem.

Ventava bastante. A janela, folgada pelo tempo, batia a cada sopro. As frestas assobiavam a chuva que estava a chegar. As roupas de cama já estavam dobradas e arrumadas em uma das malas, assim como utensílios de higiene pessoal, já que estes são os primeiros a serem lembrados tardiamente, já no meio da viagem. A lista feita pela mãe era acompanhada religiosamente, como uma prece, sem nenhum verso a ser pulado ou embolado. Mas havia itens que não constavam: estes que, secretos, não se anotam em qualquer papel de lembretes. Já separados em cima da estante, seriam colocados por último, depois do que era ordinário.

As roupas resgatavam memórias perdidas; as linhas, bordados e jeans rasgados rompiam o uivo do vento que ecoava no quarto e trazia vozes e risos que, guardados no esquecido do passado, agora se tornam claros acenos do viver. Cada roupa carrega os (des)gostos de uma vida que estava aqui. – Aqui. Cada roupa era colocada vagarosamente na mala, acariciada para evitar possíveis amassos.

Fora da mala, restavam as fotos e os presentes tiradas e trazidos na festa de despedida. Se havia espaço para colocá-las, era incerto. Laura tentou organizá-las por cima das roupas, porém a bagagem não fechava. A mala de livros já estava abarrotada, com o cadeado reforçando a tranca. Mas as lembranças não poderiam ficar. Porém, assim como o coração, as malas, nos seus vazios a serem preenchidos, carregam a ilusão de tudo poder conter. E a janela batia, gemendo a passagem das horas e a chuva a cair.

Sentada na cama, ao lado da última mala aberta, Laura acompanha a chuva a escorrer pela janela. As despedidas foram ontem, com amigos e família. Mas essa alegria forçada, feito cócegas em feridas, revolvia o estômago, prenhe de uma saudade. Olhava agora o que ficou separado, na estante, impedido de viajar. Aduana implacável, a vida tenta barrar o passado clandestino, que se esconde num excesso que todo peito custa a levar.

– Algumas malas fecham-se como caixões, lacrando algo que, sem uma memória a assinar a certidão de nascimento, apodrece sem a redenção de outra vida. Pensava nisso Laura ao ver um livro de seu pai sobre cultura no Egito antigo, que estava largado na estante. Voltava a olhar a estante ocupada pelos presentes. O vento continuava, forte, a gritar pelos finos cantos entre a janela e a parede, e todas as malas, arrumadas e fechadas, enfileiravam-se no chão, próximas à porta do quarto, aberta.



sexta-feira, 23 de julho de 2010

Longo voo II



Asas indomáveis, de elevados sonhos –

travessia num mar de vagas etéreas.
O céu ofusca a visão, que acredita ser tato.
Na fluida imensidão do querer,
A mão que arrisca o toque se perde.

Uma pena, a perder-se no azul
vagarosamente
dança ao som do descompassado vento.
E a mão, aberta, a esperar.

Gotas pesam a pena, delicada massa
que, insistente, mantém-se lenta na queda.
E a mão, aberta, a suar ansiedades.

A chuva encharca o que o voo deixou cair
e a dança se desfaz na queda suicida:

a pena, afogada, resta numa mão, fechada.


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terça-feira, 13 de julho de 2010

Olhos nos olhos

À professora Cássia Lopes

As sombras decalcavam o denso verde na terra, fértil de uma incontida vida a brotar de sua maciez – uma vida que borbulhava na água da chuva recém caída. E as luzes, driblando as frestas de folhas, apontavam as trilhas que na mata se escondiam. Estava perdido na imensidão a desnortear seus passos. Talvez nunca saísse de dentro da floresta, mas se põe andar. Passará por sombras e claridades ofuscantes, guiado por passos que não mais calçam trilhas marcadas pelo seco barro. Pois seus pés estão encharcados, assim como os olhos, que espelham um úmido verde.



quinta-feira, 8 de julho de 2010

O funeral



Os olhos, num distante vazio, desfocavam os retratos espalhados pela estante. E a mão, úmida do frio pavor, deixa escorregar a pistola, que tomba, ainda quente, no piso. No desconcertante arfar, o corpo, a tremer, descontrolava os sentidos e deixava-se cair no chão, próximo à arma. Perfumes caem também, derramando, no ar, aromas – queimados pela pólvora.

Lutando contra o desespero, Fernando usa as mãos perdidas para se apoiar e levantar-se. A moldura, ao chão, despia o espelho, agora estilhaçado, cujas fraturas desfiguram a inocente criança, outrora gravada num retrato de infância, que tempo e mofo amarelaram. O primeiro disparo atingira o passado, pendurado numa parede. O segundo, destinado à têmpora, mas guiado pela fraqueza dos irresolutos suicidas, acabou indo direto ao espelho.

Os olhos irreconhem o que enxergam no mosaico. Embora a visão se queira moldura, há reflexos perdidos. E uma bala, solitária, resta no pente, fazendo estilhaços e disparos ecoarem numa face morta.



domingo, 4 de julho de 2010

Inundado



As gotas a infiltrar o concreto fazem poças na casa recém aberta. A preocupação com a chuva, antes de sair, ficou apenas nas janelas fechadas: esquecidos os baldes na dispensa, poças refletem a luz da sala que acabo de acender. Olho rastros de água desenhados na parede, que, insistentes, ignoram a parada da chuva.


Os baldes, agora espalhados pela casa, enchem-se de pingos perdidos. Estava só. Mas um corpo ausente fazia eco no vazio da casa e de baldes que demorariam horas para serem enchidos. Seu aroma simples, exalando, no lugar do perfume, o doce existir, se prolonga na saudade muda, afinada com a sinfonia da água.

Sim, os baldes demorariam até silenciarem todas as goteiras da casa. Mas esta se enchia de outras gotas, caladas, desenhando um sabor que eu nunca pudera sentir. E era esse gosto o interminado cheiro. Um intocável seio a inundar um incurável veio que escorre de um concreto corpo, cunhado a sangue e cinza.



sexta-feira, 2 de julho de 2010

Nuit



A porta se fecha
e o olho, prendido,
a perder-se no teto
de desfocado vazio.

A cama range,
afinando os ossos
de um corpo oco
em voltas insones.

Um corpo encolhe
em forma de feto.
Fundada a noite,
o frio se faz.

O peito se abre
ninando o ido:
desperto está,
deserto virá.

O corpo se cobre,
na pausa do tempo,
dum sonho eterno
que de dia é olvido.

O sonho no sono
se figura em vida,
silenciando dores
dum vazio acordar.