As malas sempre são pensadas com antecedência. A porta aberta do guarda-roupa lembra, a cada momento, a alma de Laura despida da coragem de separar o que pretende levar. Os dias passam e algumas peças, penduradas em cabides já marcados, lembravam-na da tarefa descomeçada. Agora malas, abertas e jogadas na cama, ecoam o passado que, costurado em partes íntimas, públicas, acessórias e fundamentais, espalham-se pelo quarto e pela vida de uma garota que numa aventura trágica escolheu outro lugar para viver.
Com a porta do quarto trancada para evitar incômodos, Laura começa a separar o que poderá levar. Era outro estado, sem parentes ou amigos a recebê-la. A euforia inicial do desconhecido foi fulminante; nova vida, agora universitária, agora só, agora sua. Animava-se pela sua semi-independência, já que a asa dos pais agora surgia apenas para cobrir as despesas. Era responsável e séria – eles e ela tinham convicção disso –, mas o fogo da alegria apagou-se no vento volteante da insegurança. Ela sabia, e ninguém mais, que mãos carinhosas, de tão leves, agora acenarão um “adeus” que será difícil de tirar da sua bagagem.
Ventava bastante. A janela, folgada pelo tempo, batia a cada sopro. As frestas assobiavam a chuva que estava a chegar. As roupas de cama já estavam dobradas e arrumadas em uma das malas, assim como utensílios de higiene pessoal, já que estes são os primeiros a serem lembrados tardiamente, já no meio da viagem. A lista feita pela mãe era acompanhada religiosamente, como uma prece, sem nenhum verso a ser pulado ou embolado. Mas havia itens que não constavam: estes que, secretos, não se anotam em qualquer papel de lembretes. Já separados em cima da estante, seriam colocados por último, depois do que era ordinário.
As roupas resgatavam memórias perdidas; as linhas, bordados e jeans rasgados rompiam o uivo do vento que ecoava no quarto e trazia vozes e risos que, guardados no esquecido do passado, agora se tornam claros acenos do viver. Cada roupa carrega os (des)gostos de uma vida que estava aqui. – Aqui. Cada roupa era colocada vagarosamente na mala, acariciada para evitar possíveis amassos.
Fora da mala, restavam as fotos e os presentes tiradas e trazidos na festa de despedida. Se havia espaço para colocá-las, era incerto. Laura tentou organizá-las por cima das roupas, porém a bagagem não fechava. A mala de livros já estava abarrotada, com o cadeado reforçando a tranca. Mas as lembranças não poderiam ficar. Porém, assim como o coração, as malas, nos seus vazios a serem preenchidos, carregam a ilusão de tudo poder conter. E a janela batia, gemendo a passagem das horas e a chuva a cair.
Sentada na cama, ao lado da última mala aberta, Laura acompanha a chuva a escorrer pela janela. As despedidas foram ontem, com amigos e família. Mas essa alegria forçada, feito cócegas em feridas, revolvia o estômago, prenhe de uma saudade. Olhava agora o que ficou separado, na estante, impedido de viajar. Aduana implacável, a vida tenta barrar o passado clandestino, que se esconde num excesso que todo peito custa a levar.
– Algumas malas fecham-se como caixões, lacrando algo que, sem uma memória a assinar a certidão de nascimento, apodrece sem a redenção de outra vida. Pensava nisso Laura ao ver um livro de seu pai sobre cultura no Egito antigo, que estava largado na estante. Voltava a olhar a estante ocupada pelos presentes. O vento continuava, forte, a gritar pelos finos cantos entre a janela e a parede, e todas as malas, arrumadas e fechadas, enfileiravam-se no chão, próximas à porta do quarto, aberta.