segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Icarus II: a decolagem



– Esqueceste a noite, nobre amigo? Sabes que estar acordado contemplando distantes brilhos não é digno de homens. Vai!, busca aquela estrela, mais próxima, cuja luz queima até a mim, isento de massa e tempo.
– Vejo que conhece a dura certeza do vácuo. Também bem o sei. Mas não se ponha a falar o insustentável, jogando ao espaço palavras que calam minha estrela. Distante, sim; porém viva, sustentando minhas retinas no trono de sua esmeralda luz.
– Suas órbitas enganam-te: percorres a gravidade do mais secreto astro.
– Não sei do que fala... Por ela percorro anos, milênios-luz! Nada mais de matérias outras.
– A procura é louvável: a propulsão do viver. Mas a gravidade... Quando a esqueceste?
– Sua voz soa-me imprecação. Por que tanto diz do que não me toca? Perceba: braços, pernas, olhos, tudo meu é liberdade. O peso anula-se em minha voadura. E ainda insiste no invisível. Observa: passo pelos frios asteroides, ineficazes vilões. O tempo se desfaz na minha ida à estrela. Minhas asas resistirão e meus braços a tocarão. Tempo e espaço morrem no que me move. E ousa apontar-me um brilho qualquer?! Deixo-o só com sua chumbada atmosfera de constrição e morte.
– Desvencilha-te dos corpos, desejando o desnorte; surdeias-te do meu alvitre, trágico homem, porém a etérea nebulosa nem te afagas. E o que teu voo impede de tocá-la?
– Apedrejo sua mão! Nego esse afago mentiroso travestido de fosco lúmen que sua desditosa voz diz ser esta estrela, indicada pelo seu podre dedo. Tenta tornar sombra meu caminho, pois então desfarei seu presságio! E de lá, longe, muito longe, verá a luz que ousasse apagar!
– A fronteira final é inexcedível. Não tornes cinzas as plumas tuas, pois um buraco negro último ninho teu serás.
– Basta de sua descrença! Deixo-o com meu ‘Adeus!’ desgastado pela sua dolorida soturnez.
– Tentei alertá-lo, homem... Tua altercação é tua ruína. Bem eu conheço a luz que te faz correr aos sonhos ofuscantes. Essa luz, amigo, cegou-me antes mesmo que pudesse acariciá-la. Esse fulgor, meu caro e resoluto caído, é tua gravidade: teu próprio peso a acorrentar-te na eterna busca; é o negrume que tudo suga, matando luz, tempo, espaço, matéria e liberdade. E se chegares próximo, muito próximo, mais até do que eu cheguei, antes da eterna noite furar-lhe as órbitas, verás que esse brilho é de um tempo que nem tu nem eu conhecemos. Perceberás que tua estrela jaz supernova, espalhando-se em milhares de outras, incluindo aquela, que aqui está, viva no seu singelo piscar, a te ver descer na mais profunda queda. Ó, inevitável queda, que no interior dos fins se faz cova! Alivia-lhe o tombo, onde o espaço se despe de brilho. Abranda-lhe a alma, que de espectro jazerá encapuzada. Ó, desgraçada luz, acalme sua fome de espelho - de rebater às orbitas deste homem tua mente estrelada! Finda a branca flama que faz do Inferno a mais alta constelação do meu estimado amigo! O mais alto voo do teu derradeiro mergulho!




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